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sexta-feira, 12 de março de 2010

Gatos na História

Relações entre homens e animais de estimação podem ocultar tensões sociais latentes, como no massacre dos gatos, ocorrido na França no século 18 e analisado pelo historiador Robert Darnton




Brigas simbólicas entre cães e gatos
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA




Já vai longe o tempo em que animais, inclusive os de médio e grande portes, como porcos ou vacas, dormiam junto com homens e mulheres em construções que se assemelhavam a grandes estábulos. Se essa promiscuidade praticamente desapareceu em nossos dias, nem por isso as relações entre homens e animais deixam de estar no centro de nosso comportamento, sob as mais variadas formas, a começar pelo fato de que criamos determinadas espécies para matá-las e convertê-las em comida.
Aqui não vou me dedicar ao tema das relações entre a ética humana e esse procedimento carnívoro, tema que percorre a história da humanidade desde seus primeiros registros. Concentro-me na projeção de sentimentos e simbolizações humanas dirigidas aos seres destituídos de razão -noção esta em si mesma controversa-, tomando o caso específico dos gatos.
Em primeiro lugar, como acontece com quase todas as outras espécies, o sentimento humano em relação aos gatos não corresponde a um arquétipo imutável, mas é uma construção histórica, variando de acordo com traços culturais mutáveis no espaço e sobretudo no tempo.

O sagrado e o sádico



Assim, há uma enorme distância entre o caráter sagrado dos felinos na cultura egípcia e as associações mentais e práticas sádicas de violência que eles despertavam na Europa do século 18. A contraposição da sacralidade dos gatos no Egito Antigo, com o que se passava na Europa Ocidental muitos séculos depois, surge em várias fontes, como é o caso de uma narrativa recolhida e analisada pelo historiador americano Robert Darnton em seu livro "O Massacre dos Gatos" (Graal, 1986).
Trata-se de um episódio ocorrido em Paris, numa oficina tipográfica, no final da década de 1730, envolvendo, de um lado, o mestre e sua mulher e, de outro, os aprendizes, num período anterior à industrialização, em que todos viviam na mesma casa. Os patrões tinham grande estima por seus muitos gatos que recebiam um tratamento bem superior ao dos aprendizes, tratados duramente. Depois de simularem doloridos miados pelas noites afora, impedindo o sono dos donos, estes autorizaram que se tomasse alguma iniciativa para afastar os felinos. Acobertados pelo salvo-conduto, os aprendizes massacraram os gatos, com requintes de crueldade, e não pouparam nem mesmo o bichano de estimação da patroa.
O episódio revela a projeção nos gatos de um conflito social latente, e sua tortura e morte não podem ser tidas como um acontecimento excepcional. Pelo contrário, Darnton multiplica exemplos desse gênero.
Assim, nos dias de Carnaval - os charivaris comuns na França do período -, dias de infração das normas sociais, dentre as muitas "brincadeiras" se incluía a tortura dos gatos, estripados com grande alegria, num ritual que se chamava de "faire le chat", literalmente "fazer o gato". Os alemães chamavam os charivaris de "Katzenmusik" (música de gato), um termo que pode ter derivado dos lamentos das vítimas.
Darnton se pergunta por que os gatos foram particularmente visados nesses rituais. Segundo ele, os felinos teriam uma fascinação misteriosa, a ponto de serem associados à prática de feitiçaria, acreditando-se que as feiticeiras se transformavam em gatos para lançar maldições em suas vítimas. Eles entendiam conversas e podiam espalhar rumores maléficos numa aldeia ou numa cidade assim como tinham o poder de sufocar bebês.
Na área da sexualidade, sua simbolização era, porém, contraditória. Os gatos representavam, ao mesmo tempo, uma metáfora de orgias desenfreadas e um instrumento de conquista das mulheres, pois havia uma associação entre os gatos e o sexo feminino, a ponto de a palavra "chat" [gato, em francês] designar popularmente a vagina.

Miados lancinantes



Na Inglaterra, desde o século 17, como assinala o historiador inglês Keith Thomas em "O Homem e o Mundo Natural" (Companhia das Letras, 1988), ocorria, simultaneamente, um processo de valorização dos cães, transformando sua imagem oriental de imundos devoradores da carniça, transmitida pela Bíblia à Inglaterra medieval.
Thomas assinala também uma tendência mais lenta de crescente afeição pelos gatos, como animais domésticos de estimação, mas assinala rituais cruéis, semelhantes aos narrados por Darnton. Assim, durante as procissões de queima da figura do papa de Roma, durante o reinado de Carlos 2º (1660-85), era comum encher as efígies com gatos vivos, de maneira que seus lancinantes miados pudessem aumentar o efeito dramático.
Tudo isso pode parecer um anacronismo, que nada tem a ver com os dias de hoje, mas não é bem assim. O contraste da simbolização de cães e gatos, que se esboçava em outros tempos, chegou a nossos dias, apenas matizada pela repulsa aos cães assassinos ou, melhor, a seus donos.
Não estamos falando de um contraste que se manifesta necessariamente, mas de uma regra geral. Há pessoas que gostam mais de gatos do que de cachorros ou até detestem estes últimos assim como há quem conviva com prazer com cães e gatos ou quem não goste de animais, a não ser para degluti-los.
E os anglo-saxões escolheram a cadela para expressar a ofensa mais obscena à genitora de alguém: "Son of a bitch".
Mas, voltando à regra geral, é nítida, na nossa sociedade, a simbolização positiva do cão por sua fidelidade ao dono, sua utilidade, sua quase humanidade. De outro lado, o gato é tido como misterioso, astuto, egoísta e inútil. Se rituais de tortura de felinos já não são comuns em nossos dias, pelo menos na minha infância, encarava-se com naturalidade a liqüidação dos gatos pela garotada, com os chumbinhos de uma arma chamada de "mata-gato".
Termino com uma nota pessoal, expressando minha nítida preferência pelos gatos, em parte pelas características que uma ampla maioria tem como negativas. Como diz Michel Gonen, que não é um erudito, mas um personagem de ficção criado pelo escritor israelense Amós Oz ("Meu Michel", Companhia das Letras, 2002), "aprendemos com os gatos; um gato nunca fará amizade com quem não for capaz de gostar dele. Os gatos nunca se enganam com as pessoas". Eu acredito nisso.


Boris Fausto é historiador e presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de "Memória e História" (Graal).

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